O livro de Jó ocupa um lugar muito particular na
Palavra de Deus. Ele tem um caráter totalmente próprio, e ensina lições que não
vamos achar em nenhuma outra parte do inspirado Volume. Não é o nosso propósito
abordar a questão da autenticidade deste precioso livro nem aportar as provas
da sua divina inspiração.
Estas coisas tenho por
certo; e não temos a menor dúvida em quanto à sua veracidade, por quanto
deixamos tais provas em mãos mais capazes. Recebemos o livro de Jó como parte
das Sagradas Escrituras e, por tanto, para proveito e bênção do povo de Deus.
Não precisamos de provas para nós, nem pretendemos oferecer nenhuma delas aos
nossos leitores.
E cabe agregar ainda
que não temos intenções de entrar em investigações a respeito da autoria deste
livro, tema que, por muito interessante que seja, cremos se trate de um assunto
puramente secundário. Recebemos o livro como procedente de Deus, e isto nos
basta. Cremo de todo coração que é um escrito inspirado, e sentimos que não nos
incumbe discutir a questão referente a onde, quando e por quem foi escrito.
Resumindo, nos propomos, com a ajuda do Senhor,
oferecer ao leitor alguns pensamentos simples e práticos sobre este livro, o
qual cremos que requer de um estudo mais profundo para poder ser melhor
compreendido. Queira o Espírito eterno o Autor do livro explicá-lo e aplicá-lo
a nossas almas!
Prosperidade de Jó
Na primeira folha deste notável livro vemos o
patriarca Jó rodeado de tudo quanto podia fazer o mundo agradável aos seus
olhos, assim como de coisas que podiam outorgá-lhe uma posição importante neste
mundo. "Havia um homem na terra de Uz, cujo nome era Jó; e este era
homem sincero, reto e temente a Deus, e desviava-se do mal" (1:1).
Vemos aqui o que era Jó em sua vida. Vejamos agora o que ele tinha.
"E nasceram-lhe sete filhos e três filhas.
E era o seu gado sete
mil ovelhas, e três mil camelos, e quinhentas juntas de bois, e quinhentas
jumentas; era também muitíssima a gente ao seu serviço, de maneira que este homem era maior do que todos os
do oriente. E iam seus filhos, e faziam banquetes em casa de cada um, no seu
dia; e enviavam, e convidavam as suas três irmãs a comerem e beberem com eles" (1:2-4). Por último, para completar o quadro, se
nos apresenta o que Jó fazia. "Sucedeu, pois, que, tendo
decorrido o turno de dias dos seus banquetes, enviava Jó, e os santificava, e se
levantava de madrugada, e oferecia holocaustos, segundo o número de todos eles;
porque dizia Jó: Porventura pecaram meus filhos e blasfemaram de Deus no seu
coração.
Assim o fazia Jó, continuamente" (1:5). Aqui temos, então, um modelo de homem
bastante fora do comum. Era perfeito e reto, temeroso de Deus e apartado do
mal. Além disso, a mão de Deus o protegia em tudo, e derramava sobre seu
caminho as mais ricas bênçãos. Jó tinha tudo o que o coração pudesse desejar:
filhos, abundância de bens materiais, honra e distinção sobre todos os que o
cercavam. Em poucas palavras, quase podemos dizer que a copa do seu deleite
terreno estava cheia.
O
orgulho de Jó
Mas Jó necessitava ser provado. Abrigava no seu
coração uma profunda raiz moral que devia ser tirada à luz; uma justiça própria
que devia sair à superfície e ser julgada. Podemos, com efeito, vislumbrar esta
raiz nos versículos que acabamos de ler.
Ele diz: "Porventura
pecaram meus filhos..." (v. 5). Não parece ter contemplado a
possibilidade de que ele mesmo tenha cometido algum pecado. Uma alma que
realmente tem-se julgado a si mesma, uma alma quebrantada ante Deus,
verdadeiramente consciente do seu próprio estado, das suas tendências e
incapacidades, teria pensado em seus próprios pecados e na necessidade de
oferecer um holocausto por si mesma.
Mas deve ficar em
claro ao leitor que Jó era um verdadeiro santo de Deus, uma alma divinamente
vivificada, um possuidor da vida divina e eterna. Não poderíamos insistir o suficiente
neste ponto. Ele era um homem de Deus tanto no primeiro capítulo como no
último. Se não nos
apercebemos disto, nos privaremos de uma das grandes lições deste estudo. O
versículo 8 do primeiro capítulo estabelece este ponto fora de toda cogitação:
E disse o Senhor a Satanás: "Observaste tu
o meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, homem sincero e
reto, temente a Deus e desviando-se do mal". Porém, a pesar disso, Jó
nunca tinha sondado as profundezas do seu próprio coração. Ele não se conhecia
a si mesmo. Nunca tinha captado realmente a verdade da sua própria condição de
ruína, da sua total corrupção. Jamais havia aprendido a dizer: "...eu
sei que, em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum..."
(Romanos 7:18). Se não se compreende este ponto, não se entenderá o livro de
Jó. Não captaremos o objetivo específico de todos esses profundos e penosos
exercícios pelos que Jó teve que passar, a menos que deixemos evidente o solene
fato de que a sua consciência nunca tinha estado realmente na presença divina,
que ele nunca tinha se examinado ante a luz, que jamais tinha se medido com a
vara divina e que nunca havia se pesado na balança do santuário de Deus. Se nos
remetemos por uns instantes ao capítulo 29, acharemos uma prova incontestável
do que acabamos de afirmar. Veremos ali, de forma clara, a profunda e vigorosa
raiz da satisfação pessoal que havia no coração deste querido e honrado servo
de Deus, e a maneira em que esta raiz nutria-se dos mesmos sinais do favor
divino que a rodeavam. Este capítulo encerra um patético lamento pelo brilho
apagado dos seus dias passados; além disso, o tom e o caráter deste lamento
deixam manifesto quão necessário era que Jó se despojasse de tudo a fim de
conhecer a si mesmo à luz da presença divina que tudo o examina com atenção.
Ouçamos as suas palavras: "Ah!
quem me dera ser como eu fui nos meses passados, como nos dias em que Deus me
guardava!
Quando fazia resplandecer a sua candeia sobre a minha cabeça, e eu, com a sua
luz, caminhava pelas trevas;
Como era nos dias da minha mocidade, quando o segredo de Deus estava sobre a
minha tenda;
Quando o Todo-Poderoso ainda estava comigo, e os meus meninos em redor de mim.
Quando lavava os meus passos em manteiga, e da rocha me corriam ribeiros de
azeite;
Quando saía para a porta da cidade, e na praça fazia preparar a minha cadeira.
Os moços me viam, e se escondiam, e os idosos se
levantavam e se punham em pé;
Os príncipes continham as suas palavras, e punham a mão sobre a sua boca;
A voz dos chefes se escondia; e a sua língua se pegava ao seu paladar;
Ouvindo-me algum ouvido, me tinha por bem-aventurado; vendo-me algum olho, dava
testemunho de mim;
Porque eu livrava o miserável, que clamava, como também o órfão que não tinha
quem o socorresse.
A bênção do que ia perecendo vinha sobre mim, e eu
fazia que rejubilasse o coração da viúva.
Cobria-me de justiça, e ela me servia de vestido; como manto e diadema era o
meu juízo.
Eu era o olho do cego, e os pés do coxo;
Dos necessitados era pai, e as causas de que eu não tinha conhecimento inquiria
com diligência;
E quebrava os queixais do perverso, e dos seus dentes tirava a presa.
E dizia: No meu ninho expirarei, e
multiplicarei os meus dias como a areia.
A minha raiz se estendia junto às águas, e o orvalho fazia assento sobre os meus
ramos;
A minha honra se renovava em mim, e o meu arco se reforçava na minha mão.
Ouvindo-me, esperavam, e em silêncio atendiam ao meu conselho.
Acabada a minha palavra, não replicavam, e as minhas razões destilavam sobre
eles;
Porque me esperavam, como à chuva; e abriam a sua boca, como à chuva tardia.
Se me ria para eles, não o criam, e não faziam abater a luz do meu rosto;
Se eu escolhia o seu caminho, assentava-me como chefe, e habitava como rei
entre as suas tropas, como aquele que consola os que pranteiam.
Mas agora, se riem de mim os de menos idade do que
eu, e cujos pais eu teria desdenhado de pôr com os cães do meu rebanho." (29:2-30:1) Estas, seguramente, são expressões
muito notáveis.
Em vão buscaremos aqui os suspiros de um espírito
contrito e quebrantado. Não existem rastos de nenhum tipo de aborrecimento
próprio nem muito menos de uma desconfiança em si mesmo. Expressões que
manifestem consciência de debilidade ou de insignificância, brilham pela sua
ausência. No curso deste único capítulo, Jó se refere a si mesmo mais de
quarenta vezes, em tanto que os seus pensamentos não se dirigem a Deus mais que
cinco vezes.
Este constante predomínio do eu nos faz
lembrar do capítulo 7 de Romanos ("Não sabeis vós, irmãos (pois que
falo aos que sabem a lei), que a lei tem domínio sobre o homem por todo o tempo
que vive? Porque a mulher que está sujeita ao marido enquanto ele viver,
está-lhe ligada pela lei; mas, morto o marido, está livre da lei do marido.
De sorte que, vivendo o marido, será chamada
adúltera, se for de outro marido; mas, morto o marido, livre está da lei, e
assim não será adúltera, se for de outro marido. Assim, meus irmãos, também vós
estais mortos para a lei, pelo corpo de Cristo, para que sejais de outro,
daquele que ressuscitou de entre os mortos, a fim de que demos fruto para Deus.
Porque, quando estávamos na carne, as paixões dos pecados, que são pela lei,
obravam nos nossos membros, para darem fruto para a morte. Mas agora, estamos
livres da lei, pois morremos para aquilo em que estávamos retidos; para que
sirvamos em novidade de espírito, e não na velhice da letra. Que diremos pois?
É a lei pecado? De modo nenhum; mas eu não conheci
o pecado senão pela lei; porque eu não conheceria a concupiscência, se a lei
não dissesse: Não cobiçarás. Mas o pecado, tomando ocasião pelo mandamento,
obrou em mim toda a concupiscência, porquanto, sem a lei, estava morto o
pecado.
E eu, nalgum tempo, vivia sem lei, mas, vindo o
mandamento, reviveu o pecado, e eu morri; E o mandamento, que era para vida,
achei eu que me era para morte. Porque o pecado, tomando ocasião pelo
mandamento, me enganou, e por ele me matou.
E assim a lei é santa, e o mandamento santo, justo
e bom. Logo, tornou-se-me o bom em morte? De modo nenhum; mas o pecado, para
que se mostrasse pecado, operou em mim a morte, pelo bem, a fim de que, pelo
mandamento, o pecado se fizesse excessivamente maligno. Porque bem sabemos que
a lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido sob o pecado. Porque o que faço,
não o aprovo; pois, o que quero, isso não faço, mas o que aborreço, isso faço.
E, se faço o que não quero, consinto com a lei, que é boa.
De maneira que, agora, já não sou eu que faço isto,
mas o pecado que habita em mim. Porque eu sei que, em mim, isto é, na minha
carne, não habita bem algum; e, com efeito, o querer está em mim, mas não
consigo realizar o bem. Porque não faço o bem que quero, mas, o mal que não
quero, esse faço. Ora, se eu faço o que não quero, já o não faço eu, mas o
pecado que habita em mim. Acho, então, esta lei em mim: que, quando quero fazer
o bem, o mal está comigo.
Porque segundo o homem interior, tenho prazer na
lei de Deus; Mas vejo nos meus membros outra lei, que batalha contra a lei do
meu entendimento, e me prende debaixo da lei do pecado, que está nos meus
membros. Miserável homem que eu sou!
Quem me livrará do corpo desta morte? Dou graças a
Deus, por Jesus Cristo, nosso Senhor. Assim que, eu mesmo, com o entendimento,
sirvo à lei de Deus, mas, com a carne, à lei do pecado."); mas devemos marcar uma diferença importantíssima,
a saber, que nesse capítulo de Romanos o eu é uma pobre, fraca,
inservível e miserável criatura que se encontra na presença da santa lei de
Deus; enquanto que em Jó 29, o eu é uma personagem de destacada
importância e influência, uma personagem admirada e quase adorada pelos seus
semelhantes.
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